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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O beijo no asfalto

Cena de O beijo no asfalto (Renato Borghi em cena). Fonte: www.funarte.gov.br

O beijo no asfalto é a peça de Nelson Rodrigues de que mais gosto. Ela possui uma trama muito bem amarrada, repleta de ambiguidades e falsas pistas. Bem ao estilo rodriguiano, ela mistura o jocoso, o trágico e o patético, formando uma tragédia melodramática, ou tragédia urbana, ou tragédia carioca. Os diálogos sincopados dão um ritmo para a peça que quase não há comparação nem na obra do próprio dramaturgo. Da mesma forma, há um trabalho na composição de cada personagem que é formidável. Em suma, com essa peça, acredito que Nelson Rodrigues conquistou a sua maturidade dramática. E, embora já tenha me debruçado muitas vezes sobre esse texto e conheça cada fala de cada personagem praticamente de cor, nunca escrevi sobre a peça. 

Em 2012 será comemorado o centenário do polêmico dramaturgo. Em meio às várias manifestações, no Teatro de Arena Eugênio Kusnet haverá um ciclo rodriguiano, com espetáculos e debates. Curioso pensar que nesse teatrinho do centro de São Paulo, lugar de autores como Guarnieri, Boal e Vianninha, agora Nelson seja encenado. O reacionário no ambiente do teatro de esquerda por excelência. 

Mas deixemos esses paradoxos de lado. A vida é repleta deles e no teatro não poderia ser diferente. A peça que vi ontem é rodriguiana e não é. Explico. O diretor Marco Antônio Braz seguiu à risca o texto composto pelo dramaturgo, respeitando inclusive algumas indicações de rubricas. Cada frase da peça foi dita pelos atores nesse espetáculo. Nesse sentido, a encenação foi fiel ao dramaturgo. No entanto, não acredito que ali esteja a essência rodriguiana. É claro que o teatro de Nelson Rodrigues possui uma violência latente, intrínseca às falas, da mesma forma como ela pede, em muitos momentos, o exagero que recaia sobre o kitsch. Em alguns momentos, ressalto. Fiquei pensando nas personagens macabras da peça, Amado Ribeiro, o jornalista inescrupuloso, e o Delegado Cunha, seu comparsa. No caso de Amado Ribeiro, há um pedido de exagero: a personagem precisa ter uma violência forte, pungente, cruel, que recaia muitas vezes no grotesco de sua composição. Por isso, a opção do diretor em acentuar esse aspecto nesse espetáculo não me soou tão estranha. Amado Ribeiro foi interpretado por Elcio Nogueira, em uma forte caracterização da crueldade e da baixeza (ele destacou na sua interpretação uma inclinação homossexual com a qual eu não concordo. Cairia numa leitura psicanalítica, que é para mim muito mais uma pista falsa no teatro de Nelson Rodrigues). 

Mas não acho que o mesmo perfil se adapte ao Delegado Cunha. Esse, igualmente mau-caráter, tem um lado ambíguo que a peça de ontem não ressaltou, a covardia. O Cunha é, sobretudo, um covarde e que se esconde na sombra do Amado. Ele faz o que o Amado quer. E a interpretação, na pele de Rodrigo Fregnan, caiu unicamente num exagero mórbido, nivelando a personagem e roubando a nuance dessa ambiguidade, entre o sádico e o covarde. Igual ambiguidade da personagem Aprígio se perdeu em alguns momentos, representado pelo experiente Renato Borghi. Aprígio é, o tempo todo, a personagem falsa, que encaminha a ação para o engano. E isso não se evidenciou na encenação do Teatro de Arena. Pena, porque é a grande riqueza do texto rodriguiano. 

A encenação teve seus altos e baixos. E as opções são -- evidentemente -- do encenador, que pode discordar muito do texto. O que soou estranho, no entanto, foi essa fidelidade ao texto, mas não ao que o texto diz. Não vou contar outros detalhes, porque perderia em muito a surpresa (para quem ainda quer ver, ela ficará em cartaz até fevereiro de 2012). O diretor opta por incorporar alguns detalhes à peça, que às vezes funcionam, às vezes não. Se ele se preocupasse, no entanto, em exagerar menos, o conjunto seria melhor. 

Eis meu primeiro texto escrito sobre O beijo no asfalto

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